Embora muitas vezes despercebida, ou notada subliminarmente pela audiência, a trilha sonora é fator narrativo que integra a obra cênica
Minutos antes de um espetáculo teatral, é comum escutarmos as tradicionais três batidas indicando que o início da peça se aproxima. Esses sinais, provenientes do teatro do século XVII, foram a alternativa incorporada pelo dramaturgo e ator francês Molière para pedir o silêncio da plateia, pois o rei já teria chegado ao local. Desde aquela época, ou mesmo antes, o som era tido como premissa para a apresentação começar. Poderia ter sido um recurso visual, mas ele escolheu se comunicar com o público através de um código sonoro. Na linguagem teatral, o som, assim como a luz, o cenário, o figurino são signos, elementos cênicos. E a música, quando atrelada a uma montagem, é mais que ornamento, podendo tornar-se fundamental à construção de toda a dramaturgia.
No teatro contemporâneo, o espetáculo não precisa necessariamente partir de um texto para ser concebido, por exemplo. Tão importante quanto ele pode ser a música, quando ela participa ativamente na criação da cena. Ao pensarmos em trilha sonora original, em um primeiro momento, podemos compreendê-la como composições criadas exclusivamente para determinado espetáculo. As músicas do Baile do Menino Deus (1983), Bandeira de São João (1988) e Arlequim (1990), da Trilogia das festas brasileiras, seriam exemplos. Nos três, textos e canções – com grande influência dos festejos populares – foram pensados e desenvolvidos, desde o início, de maneira bastante integrada pelos criadores Francisco Assis Lima, Ronaldo Correia de Brito e pelo músico Antônio Madureira. Nesse contexto, é possível considerar como original, também, uma releitura ou recriação musical e, até, a interpretação de uma música pelo espetáculo (isso, com o consentimento prévio do autor).
Numa visão brechtiana, se o teatro é essa casa produtora de sonhos – em tempo e espaço reais –, “ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho”, para citar também o verso do poeta Murilo Mendes. “Qualquer trilha que eu fiz com o Galpão é original porque, em nossa apropriação e quando nós construímos o arranjo, recriamos aquele discurso musical, dando prioridade à forma singular e à sonoridade particular do grupo”, afirma Ernani Maletta, responsável pela concepção musical de várias encenações do Grupo Galpão, entre elas Um Molière imaginário (1997), Eclipse (2011) e Nós (2016).
Talvez por valorizar as peculiaridades, exista ainda a tendência desse e de outros grupos em preferirem que as “músicas cênicas” sejam executadas no aqui e agora. “A trilha gravada, às vezes, pode ter uma coisa de tentativa de naturalismo e realismo. Ao vivo, seria o pacto da magia, do não realismo”, considera Maletta. Mas o grupo mineiro também tem, em seu repertório musical, faixas feitas em estúdios, que seriam alternativas estético-funcionais. “O Galpão faz um teatro muito musical, a música é dramaturgia. A gente também tem trilhas gravadas, o que, às vezes, serve para facilitar e amplificar os efeitos de palco. Tem valsa, modinha e músicas que são criadas para os próprios espetáculos”, afirma o ator e diretor do Galpão, Eduardo Moreira, em entrevista à Continente.
ESCOLHA DE SONORIDADES
A história que vai ser contada também contribui para as decisões da direção musical. Quais instrumentos, timbres e melodias serão utilizados? E, no que se refere à textura do som, a trilha sonora será apresentada ao vivo ou será pré-gravada? Nas montagens de Ossos (2016), do Coletivo Angu de Teatro, de A peleja da mãe nas terras do senhor do açúcar (2011) e de A gloriosa vida e o triste fim de Zumba sem dente (2016), dirigidas por Carlos Carvalho, por exemplo, o pernambucano Juliano Holanda conta que os elementos narrativos o ajudaram a escolher as sonoridades. Em A peleja, ele optou por diferentes arranjos de viola com pedais, pois a história se passava na Zona da Mata Norte e “era importante que a trilha deixasse claro de que lugar se estava falando”.
Já em Ossos, texto adaptado do romance do escritor Marcelino Freire, por ser ambientada em São Paulo e trazer referências das boates, Juliano definiu que as canções seriam gravadas e preservariam o marcante acento de oralidade e as frases curtas características da literatura de Freire. Sobre seu processo criativo no teatro, o músico conta: “Geralmente, eu recebo o texto, vou anotando ideias, palavras, frases, coisas que possam me ajudar, uma espécie de brainstorm. Carlos Carvalho tem uma coisa mais prática, do corpo a corpo; Ossos teve um processo planejado, iam montando e nós íamos discutindo como a trilha sonora entraria, se colaboraria com a cena, ou se as letras das canções entrariam na narrativa”.
Cada equipe responsável pelos elementos cênicos – luz, cenário, figurino, direção, por exemplo – reserva sua maneira singular de trabalho. Desde as pesquisas à composição da cena no palco, cada estágio de preparação tem suas particularidades. O modus operandi da elaboração das sonoridades, melodias e harmonias para as músicas cênicas, sejam criações ou adaptações de composições já existentes, depende de cada trabalho, mas há etapas em comum.
No caso dos músicos Leonardo Vila Nova, Juliano Muta e Tiago West, que assinaram as trilhas de h(EU)stória – Tempo em transe (2014) – de autoria dos dois primeiros – e pa(IDEIA) – Pedagogia da libertação (2016), de Júnior Aguiar, as criações são permeadas pela presença constante do diretor. “Antes do espetáculo, ele apresenta o roteiro e deixa a gente à vontade para criar, mesmo que pontuando: ‘essa parte poderia ter uma música assim’ ou sugerindo um efeito. No pa(IDEIA), a gente pôde desenvolver ainda mais e aprofundar melhor que no Tempo em transe. Conseguimos trabalhar com camadas de músicas diferentes, por exemplo, tivemos sacadas de desenvolver efeitos e malhas sonoras que causam impactos”, afirma Vila Nova.
Essa aproximação entre diretor e os responsáveis pela trilha sonora também acontece com o duo Pachka, formado por Tomás Brandão e Miguel Mendes. O primeiro mergulho dos dois nesse “entrelugar” da música desenvolvida para o teatro se deu a convite de Moacir Chaves para o espetáculo Duas mulheres em preto e branco (2012), e, em seguida, em Rei Lear (2014). “Podíamos ser músicos, mas éramos criadores na trilha. Ali, você é mais do que músico, é um agente dentro daquela cena que recebe luz e ressignifica. Dentro do teatro, a participação do músico ganha outra dimensão”, afirma Tomás Brandão. Além disso, depois de trabalharem com teatro, os dois músicos estenderam a percepção do palco como um espaço cênico para os seus trabalhos autorais e, em 2016, se uniram a Carlos Filho e ao iluminador Cleison Ramos para o espetáculo músico-sensorial Estesia.
Para o diretor musical curitibano Gabriel Schwartz, cada espetáculo demanda nova pesquisa para que a trilha sonora seja desenvolvida. Em Oxigênio (2010), da Companhia Brasileira de Teatro, por exemplo, a ideia inicial do diretor Márcio Abreu era uma estética rock; enquanto que para Atman (2014), da Parabólica Oficina de Arte, partiu-se de pesquisas sobre jazz contemporâneo e free jazz. Em Tchekhov (2013), da Ave Lola Espaço de Criação, a elaboração sonora foi assinada pelo músico do Théâtre du Soleil, Jean-Jacques Lemètre. Além de composições do francês, as músicas do espetáculo transitavam entre o clássico e a inspiração cigana. “Para compor uma trilha nova, você sai praticamente do zero. Eu não imponho o que é o certo para aquela cena. O diretor dá as ideias e você percorre, vai se construindo junto com ele. Muitas vezes, a referência musical vem com a estética embutida, com a estética do contexto e o perfil do personagem”, comenta.
Leia matéria na íntegra na edição 196 da Revista Continente (abril 2017)
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O som em cena
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