Em Entre duas fileiras, o polêmico personagem da cena teatral faz um relato de sua vida pessoal, sua carreira e alinhava impressões acerca do mundo artístico
Um cidadão desterritorializado escreve. ELES, os alemães. ELES, os ingleses. ELES, os brasileiros. ELES, os americanos. Nunca NÓS. Afinal, o tempo lhe “provou que é tolo criar raízes em um país, cidade ou comunidade. Todo mundo está melhor, se todo mundo está melhor”. O cidadão do mundo pode ser encontrado na Alemanha, na Suíça, no Brasil ou em Nova York. Pode ser encontrado também em um espetáculo de teatro, uma ópera, uma ilustração, um livro ou em qualquer outro lugar onde houver pulsação de arte.
Amado por muitos e destratado por vários, um pouco do cidadão Gerald Thomas pode ser encontrado na autobiografia Entre duas fileiras, publicada pela Editora Record no final de 2016. Intenso como sua própria vida, não poupa assuntos em sua escrita e, com extrema habilidade literária, nos conduz ao longo de mais 350 páginas pelos encontros e desencontros de um dos artistas mais polêmicos de sua geração.
Escrito em inglês e traduzido posteriormente para o português, sua obsessão por comunicação é tamanha, que a nota inicial da edição nos aponta a possibilidade de Thomas ter escrito este livro duas vezes – em inglês e em português – e revisto pelo menos cinco. Não à toa, o categorizado como hipocondríaco e bipolar se autodefine como pentapolar.
Não esperemos uma autobiografia cronológica. Ao se definir em cima de um palco, o autor executa o exercício imaginário de conversa com os leitores e com um assistente de nome Michael. Para isso, utiliza diferentes recursos linguísticos, que vão desde a recorrência de frases análogas (digamos que tudo começou) à constante solicitação de seu assistente, além de interlocuções questionadoras quanto à presença do leitor.
Se o início do livro é marcado claramente por uma narrativa ficcional, os episódios posteriores trazem os leitores mais próximos da “vida” de Gerald, de suas realizações, andanças e, principalmente, obsessões. O próprio autor relata em seu livro a busca pela escrita como pensamento. “Penso do modo como falo, logo, existo”.
E essa existência é marcada pela espera de “que os ecos de (sua) risada possam ser ouvidos por alguém, qualquer um, perto ou longe, que compreenda sua dor e a dor de viver, a dor de estar vivo e a frustração de não ser capaz de solucionar a insolúvel doença chamada humanidade e seu sangue pútrido”.
Talvez nisso resida a principal característica de seu livro. O transbordamento de sentimentos e afetos que nutriu pelas pessoas que passaram em sua vida, como Ellen Stewarte, sua La MaMa, e Fernanda Montenegro, sua ex-sogra. Suas marcas e cicatrizes são revisitadas, sem o receio de fazê-las sangrar novamente. Uma espécie de testamento, ora de um menino judeu que se via obrigado a estar sempre em estado de alerta para fugas, ora de um artista que ressignificou sua vida e seu estar no mundo ao se deparar com obras de Rembrandt e de Picasso.
Ao afirmar que biografias e autobiografias são formas lentas de morrer, Thomas nos oferece uma dose concentrada de vida. Como bom contador de histórias, deixa-nos o desejo de sê-lo, mesmo que por alguns instantes, ou de fazer parte de sua conspiração global, sua organização secreta, que se estende por todos os continentes, a qual denomina “E, mortos, caminhamos”, enquanto outros a chamam de “teatro”.
Poucos artistas tiveram uma relação tão ferrenha com a crítica especializada. Provavelmente, boa parte dessa o acusará, mais uma vez, de praticar seus devaneios, uma mera narrativa fictícia. Esses limites, entretanto, ele mesmo adianta pouco se importar, afinal, “uma biografia é, em virtude de seu conteúdo literário, ficção. Não estou dizendo que este não seja o melhor relato possível de minha vida – e de minhas referências. Não é isso que estou dizendo. O que estou dizendo é que, ao confiá-lo a vocês, minha plateia, ele se torna puramente ficcional”, escreve.
Leia matéria na íntegra na edição 195 da Revista Continente (mar 2017)
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Dramaturgo se reconta em autobiografia
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