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A urgência da fala em tempos de silêncio

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Montagem faz referência à figura de Dom Helder. Foto: Alécio César/Divulgação


“Se falo dos famintos, todos me chamam de cristão; se falo das causas da fome, me chamam de comunista", costumava reivindicar o arcebispo Dom Helder Câmara, figura vinculada aos direitos humanos no Brasil. Um mergulho em sua obra – traduzida para várias línguas, vale ressaltar – serviu de mote para que os diretores Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante, da Cia. Do Tijolo (SP), desenvolvessem a dramaturgia do espetáculo O avesso do claustro, que será apresentado no próximo sábado (28/1) e domingo (29/1) no Teatro Santa Isabel, compondo a programação do 23º Janeiro de Grandes Espetáculos.

Ativo exponente do humanismo, foi inúmeras vezes indicado ao Prêmio Nobel da Paz, mas nunca recebeu. Há quem diga que por motivos de pressão contrária dos militares na época ou, ainda, por relutância do Vaticano que compreendia como incoerente (ou constrangedor) um arcebispo latino-americano receber o prêmio antes do Papa em vigência.

No título do espetáculo, o claustro referido faz (também) alusão ao modo de viver (em clausura) dos mosteiros isolados e silenciosos onde alguns religiosos aceitam permanecer. Ali, acreditam estar se conectando com Deus e com a humanidade. Para o arcebispo emérito, a ligação acontecia de outro modo. Na aproximação e demonstração (física, inclusive) do afeto era que a relação entre o místico e o terreno prosperava. Silêncio, para ele, só durante seus momentos de oração, uma vez que reconhecia que o contexto histórico e político de sua época – a ditadura militar –, o impelia ao falar, não ao calar. Era preciso resistência.

Sem dúvida, foi uma figura complexa: seguia todos os ritos eclesiásticos demandados a um bispo da Igreja Católica, mas não abdicava de sua postura crítica e questionadora sobre seu tempo. "A gente escolheu Dom Helder por ele ter sido um personagem muito importante no enfrentamento da ditadura. Era uma figura da luta, mas também do afeto, sempre abraçando as pessoas. Uma militância muito ligada aos pobres, mas consciente de que essa miséria que existe no país tem nome, tem sistema. Ele dizia: 'o problema do Nordeste não é a seca, são as cercas'", argumenta Dinho Lima Flor.

Ao longo de cinco anos de pesquisa para a construção da montagem d'O avesso do claustro, a equipe da Cia. do Tijolo leu praticamente tudo o que ele escreveu. Houve também uma incessante busca de referências sobre fatos da vida e ações da militância do “bispo vermelho”, para usar uma expressão do jornalismo da época. A escolha por essa figura obstinada não se deu por acaso, já que as montagens do grupo costumam partir de personagens históricos com ideias e perspectivas ideológicas voltadas para o humanismo.

TIJOLO
Fundada em 2008, a companhia já apresentou Concerto de ispinho e fulô, em que revisitavam a obra do mestre Patativa do Assaré, e o musical Cantata para um bastidor de utopias, com montagem baseada em texto do espanhol Federico García Lorca. Retomar a obra de Dom Helder e suas ideias – ou ideais – de coletividade seria para o grupo também pensar o próprio “fazer teatro” e sua causa, “essa causa coletiva”. Em entrevista à Continente, o diretor Dinho Lima Flor afirma: "A Cia. do Tijolo tem trabalhado com alguns nomes de pensadores do Brasil do último século. Paulo Freire, Darcy Ribeiro sempre estão próximos da gente, assim como Nise da Silveira. Essas são figuras que, neste momento triste do país, no qual estamos em um abismo, trouxeram um lado humanista, um lado social e um lado político”.

Apesar dos personagens centrais da Cia. do Tijolo terem recorrentemente tendências à políticas de esquerda, o diretor garante não haver partidarismo, mas um paralelo, apresentado de maneira crítica, entre o atual discurso do Congresso Nacional e o discurso integralista da década de 1930 no país. Além disso, na encenação, eles fazem também referência à Missa Luba, uma versão africana do Congo da Missa Latina, trazida para o Brasil por Dom Helder, após ser apresentada no Vaticano, em 1962. 

O trabalho gestual do espetáculo foi minuciosamente elaborado, já que os atores e diretores perceberam muita expressividade nas mãos do arcebispo. Segundo Rodrigo Mercadante, eles consideram o que um diretor de teatro, muito próximo à Cia do Tijolo, dizia ser a resposta de seu pai quando perguntavam o que era Deus: “Deus são duas mãos que trabalham”. Bem simbólico quando aliado à inquietude e ao caráter avesso ao claustro de Dom Helder Câmara. Suas ações, gestos, acenos e cumprimentos eram simples, mas – a história não nega – incomodavam e eram quiçá capazes de transformar. Compreendendo como uma das "essências" do arcebispo esse sentido de ação e mudança pelas mãos, a Cia. do Tijolo o incorporou ao espetáculo, ou como reitera um dos diretores: “A gente começa a brincar com essa história das mãos que forjam o mundo, as mãos que interferem na história e criam cultura”.

 

Serviço:
O avesso do claustro, da Cia. Do Tijolo (SP), no 23º Janeiro de Grandes Espetáculos
No sábado (28/1) e domingo (29/1), respectivamente às 20h e às 18h 
Ingressos: R$ 60 e R$ 30 (meia) na bilheteria do teatro
Informações: (81) 2626-2605
Site: http://janeirodegrandesespetaculos.com/SITE/


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